segunda-feira, 21 de abril de 2008

O fumador, essa espécie exótica

«O que não aconteceu»

«Posso dizer que, no final, fiquei surpreendido por nunca ter sido multado. As eventuais consequências legais da minha "aventura" tinham sido, aliás, uma das preocupações iniciais quando preparei o trabalho, o que me levou a consultar o advogado da empresa e a garantir que esta se responsabilizava pelos montantes das multas. É que não são pêra-doce - ser "aliviado" em 500 ou 1000 euros por um agente da autoridade não é difícil. Tive sorte? Se calhar.»


Isto é o parágrafo final de um artigo publicado ontem no Diário de Notícias, numa "secção" regular daquele jornal que se designa "Na Pele de..."

Desta vez, tocou ao jornalista fazer-se passar por fumador compulsivo (ou distraído, vem a dar no mesmo). Vai daí, o homem fez-se à estrada, salvo seja, com fotógrafo a tiracolo, e lá foi à luta, a ver se alguém o chateava por fumar em locais interditos. Experimentou o Metro, e nada, acendeu um cigarro no centro comercial das Amoreiras, e népia, andou em dois táxis e encheu-os de fumo, com o beneplácito dos motoristas, experimentou uma Loja do Cidadão e nem aí a coisa deu para o torto. Uma chatice, pelos vistos. Parece que, afinal, depois de tanta treta, mais de quatro meses após a lei 37/2007 ter sido parida, pouca gente normal liga ao assunto.

Mas será mesmo assim? Não terá isto sido mera coincidência ou, quem sabe, este jornalista ser mesmo um tipo cheio sorte? Se calhar, é cá um palpite que eu tenho, a coisa pode correr bastante mal, se alguém quiser arriscar brincar às distracções. Digo-o por experiência própria, por ouvir dizer e também pelo que se vai lendo, aqui e ali. Veja-se este caso, saído hoje no mesmo jornal, na "secção" de cartas ao Director.




«Tolerância»
«Apesar de não ser fumador, não concordo com a cruzada higiénica contra os fumadores em Portugal. Os não fumadores não têm de querer obrigar toda a gente a deixar de fumar. Mas os fumadores também não têm razão quando defendem que, nos locais públicos onde seja permitido fumar, não devem ser impostas quaisquer regras relativamente à ventilação do ar, segundo o princípio "só lá vai quem quer".
Os espaços públicos devem ser abertos a toda a gente e, como tal, devem dar garantias a qualquer pessoa de aí poder estar sem ser incomodada. Há locais onde o fumo é tanto que uma pessoa não consegue sequer abrir os olhos, para já não falar no fedor pestilento que deixa nas roupas. Ora, isto é inadmissível. Tal como se exige aos bares, para poderem passar música ou cozinhar, que tenham condições para tal, também lhes devem ser exigidas determinadas condições para que possam permitir que aí se fume


Se porventura alguém me perguntasse - coisa de que felizmente estou safo - algo como "mas o que raio tem isto de mais?", e mesmo sabendo que às vezes nem com desenhos a coisa vai lá, sempre gostaria de esclarecer que este documento é um verdadeiro panfleto de fundamentalismo. O fulano que escreveu isto, e aqui sou obrigado a omitir-lhe o nome porque o que me apetece é chamar-lhe nomes, representa e ilustra a pior espécie de pide sanitário. Note-se como começa por dar uma de "amplas liberdades", assim como se fosse muito tolerante, e tal, mas depressa lhe foge o discurso para a cacetada (como caceteiro que é, confere); na frase "Os não fumadores não têm de querer obrigar toda a gente a deixar de fumar" está condensado todo o programa destas figurinhas inquisitoriais. Este gajo por certo se julgará muito civilizado e urbano, por assim dizer; mas deixem-no à solta, a ele e aos milhares como ele, dêem-lhes trela, forneçam-lhes parcimoniosamente os fósforos, e logo vereis essa gente a queimar em auto-de-fé todos os hereges fumadores; e vereis também como não se ralarão então eles absolutamente nada com a fumarada que assim fazem, que a sua missão é sagrada e que são divinos os seus desígnios, já que é para bem dos próprios supliciados.

Parece exagero, assim de repente, pois não parece?

Bem, pronto, lá vão os desenhos, então. O que este fulano diz - e que demonstra, entre outras coisas, que o tal jornalista teve uma sorte de cabrão, como soe dizer-se - contém a essência programática de qualquer espécie de racismo ou xenofobia. O que ele diz, trocado em miúdos, equivale a coisas tão comuns como as seguintes frases lapidares:

_ Eu cá não sou racista, só não gramo é os pretos.
_ Não tenho nada contra os ciganos, mas acho que deviam ir todos lá pr'á terra deles.
_ Para mim, somos todos iguais, tirando os cabrões dos velhos e a juventude, esses drógados.
_ O homem e a mulher são iguais em direitos, mas cada qual no seu lugar. E o lugar da mulher é em casa, pois.
_ Cá p'ra mim, esse tipo tem ar de vigarista, foda-se, basta olhar-lhe p'ró focinho.
_ Considero-me um democrata, mas realmente ele há coisas que não se podem admitir em política.
_ Os ricos que paguem a crise.
_ Tu és o carro que tens, portanto, com essa porcaria não passas de um bardamerdas.
_ As mulheres são todas umas putas, menos a minha mãe e a santa que tenho lá em casa.
_ Os homens são todos uma cambada de machistas.
_ Este mundo é dos espertos.
_ Anda meio mundo a enganar o outro meio.

Portugal está tão cheio de frases lapidares como a abarrotar de imbecis que as proferem. O antitabagismo é a mais moderna válvula de escape para a boçalidade das massas e serve na perfeição como álibi para que as elites nada façam de realmente importante.

Troquem-se os factores nas fórmulas ou nos lugares-comuns, sejam aquelas verbalizadas ou estes consuetudinários, e os resultados permanecerão imutáveis: troglodita é troglodita, aqui ou na China (outro chavão), e pretexto é pretexto, por mais rebuscada que seja a argumentação e por mais subtil que seja a falácia.

Se estas coisas porventura não fossem (exactamente) assim, o leitor "indignado" com o café do fumador indignar-se-ia com o preço do café, o jornalista ter-se-ia posto "na pele de" um tetraplégico, por exemplo, e não na de um simples fumador e, por fim, sejamos coerentes, eu próprio devia estar neste momento produzindo algo de útil, em vez de estar para aqui pregando aos peixes. Mas enfim, que Deus me perdoe, isto foi aquele sacana de carassius auratus que está ali há um ror de tempo, às voltas, às voltas, às voltas, a olhar para mim com ar de dúvida.

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