quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

História do fumo I - Arqueologia da fumaça

(...)
Quando não estava no Laboratório estava na Biblioteca, na mesma cadeira, a que enfrenta a porta de entrada da sala mais recolhida. Ao entrarmos na primeira sala fazia-se anunciar pelo aroma doce do fumo do cachimbo. De tons azulados desenhava
no ar figuras que os olhos acompanhavam, por vezes sonhadores.
Por detrás do fumo olhava para nós...muitas vezes...também doce. Outras vezes crítico ou irónico, mas sempre acolhedor, amigo, generoso e Professor.
(...)
Era o dia em que o Professor vestia a bata. Empunhava numa mão o cachimbo e na outra o martelo de reflexos e avançava para o doente. Quando começava a ouvir o relato da história apoiava o pé na trave lateral da cama, começava a carregar o cachimbo, calcava o tabaco e depois acendia o fósforo, lentamente. Por vezes ficava suspenso nas palavras do interno e deixava apagar o fósforo que acabava por arder num sacrifício inútil. Finalmente o fumo surgia como se fosse revelador de uma decisão interna, conciliar, que levava à formulação das hipóteses de diagnóstico. Eram bons momentos de ensino prolongados, por vezes, na biblioteca à procura da confirmação das hipóteses.


Excertos de «Prof. João Alfredo Lobo Antunes - Uns olhos por detrás do fumo», por Alexandre Castro Caldas, Director de Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, Lisboa; Professor Catedrático de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Publicação de Sociedade Portuguesa de Neurologia, Revista Sinapse, Maio de 2002.

Sem comentários: