quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Fumos privados, públicas virtudes

A Lei 37/2007 refere por dez vezes o termo "público", sob diversas formas e circunstâncias: atendimento directo ao público, instalações afectas ao público, venda ao público, área destinada ao público, transportes públicos, contributo público, serviços públicos.

Como (muito bem) diz a Associação de Bares e Discotecas da Zona Histórica do Porto (ABZHP), a mais do que evidente questão, a forma mais simplezinha de tornear os constrangimentos legais, no que diz respeito a fumar, é... fazê-lo em privado. Ou seja, se a "lei do tabaco" - no seu espírito (persecutório) e na sua letra (fundamentalista) - proclama como objectivo principal a protecção da "saúde pública", então não haverá nada a objectar - nem do ponto de vista legal nem, muito menos, do ponto de vista moral - a que os cidadãos fumem os seus cigarros e charutos em espaços privados. Se ainda não é proibido cada um fumar na casa de cada qual, e se podem ser legalmente constituídos espaços e associações sem fins lucrativos e de carácter privado, isto é, aos quais apenas os respectivos membros podem ter acesso, então fácil será concluir que não existe o mínimo entrave a que simples grupos de cidadãos se associem e criem os seus próprios espaços de convívio, privados e reservados.

Está tudo no tal étimo "público". Em havendo dúvidas, basta puxar de um dicionário:

«1. relativo ou pertencente a uma comunidade
2. relativo ou pertencente ao governo de um país, estado, cidade, etc.
3. que pertence a todos; comum
p. opos. a privado
4. que é aberto a quaisquer pessoas
5. sem carácter secreto; manifesto; transparente
6. universalmente conhecido
7. o homem comum, do povo
8. conjunto de pessoas; o povo de determinado lugar
9. conjunto de pessoas com características ou interesses comuns »
(Dic. Houaïss, 2004)

Na minha casa, pelo menos até ver, apenas entra o meu "público" privado, gente que eu sei não vai lá para me chatear a moleirinha. Quem me adentra a porta, já sabe que irá levar com uma fumarada homérica pela proa. Posso convidar quem eu quiser, quando quiser, como quiser, para umas cartadas até nascer o sol, para uma sessão de palheta até às quinhentas, para umas tainadas e se calhar umas copofonias valentes. Posso fazer tudo isso e muito mais, na minha própria casa e na casa dos meus amigos; ou podemos, nós outros, em não havendo já espaço para tanta gente, alugar um sítio para o efeito. Qual é o problema? O que têm a dizer, quanto a isso, aqueles que tanto se preocupam com a minha rica saudinha? Posso ou não posso?

Então?

E se, por mero acaso, eu não gostar de música em altos berros - como não gosto - e conhecer uma data de gente que não só mas também - como conheço - e, ainda por cima e também por mero acaso, um desses bacanos tiver dinheiro até dizer chega? Hem? Que me dizeis, vós outros, nesse caso? O tipo não pode alugar - ou mesmo comprar - um espaço, uma loja, um sítio qualquer para juntar os amigos? E, sendo todos nós fumadores, estando numa casa particular (onde, repita-se e vinque-se bem) o respeitável "público" não entra, então não podemos fumar ali à vontade? E se quisermos, por exemplo, transformar as nossas tertúlias periódicas em clube, com estatutos e tudo (ou sem eles, vem a dar no mesmo), como é? Algum problema?

O ridículo desta lei fica desde logo, por conseguinte, mais do que patente. A óbvia hipocrisia dos fundamentalistas, idem aspas, e pelos mesmos motivos; veremos o que irão agora inventar mais, na sua sanha cega contra a liberdade individual, no seu ódio feroz à diferença e aos pequenos prazeres da vida, na sua paranóia tóxica de raiz nacional-socialista, na sua maldade atávica, no seu sadismo travestido de altruísmo.

Como diriam os maoístas, nos idos de 70, que mil clubes privados floresçam! O associativismo deve avançar a todo o vapor! Em suma: o horizonte é fumarento, camaradas!

Declaração de voto, por assim dizer.
Se bem que entendendo as motivações, devo dizer que não me agrada nada a "artistice" legal que a referida ABZHP se prepara para lançar e, atrás dela, certamente, outro tanto farão as demais associações congéneres. Uma coisa é expor o absurdo desta lei grega (do Comissário grego da UE e do comissário grego português), outra bem diferente é "tornear" a dita lei com expedientes de legalidade duvidosa. Aquela do "sócio na hora" que, a troco de um Euro, terá direito a uma bebida grátis, bem, é um poucochinho rasca, para não dizer outra coisa. Acho perfeitamente que se ridicularize a lei e o legislador, acho pessimamente que se tente fazer passar as pessoas por parvas.
Mas enfim, paciência, talvez esse truque baixo esteja ao nível dos novos inquisidores. Pode até ser que nem isso entendam.

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